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A metamorfose urge
Falar de metamorfose hoje pode ser uma maneira de interrogar nossa própria forma de existir — e de reconhecer a urgência de uma transformação em nossa relação com o mundo, para aprendermos a habitá-lo de outro modo. Costumamos associar a ideia de metamorfose à experiência individual: superação, reinvenção, amadurecimento do eu — uma narrativa moderna do progresso pessoal.
Mas a metamorfose que se apresenta hoje não é psicológica, e sim cosmológica: uma mutação do lugar a partir do qual pensamos e sentimos nossa existência. Uma metamorfose que desloca o eixo do indivíduo para a Terra. Essa transformação implica em desfazer completamente a antiga separação entre “humanidade” e “natureza”.
Durante séculos, o Ocidente considerou a si mesmo como exceção: seres de cultura diante de um mundo de coisas. Essa ficção nos trouxe até aqui — à crise ecológica, ao esgotamento do sentido, à perda da continuidade com o vivo. O que chamamos de “meio ambiente” não é um entorno, mas uma rede, uma trama da qual fazemos parte. No entanto, continuamos agindo como se pudéssemos sobreviver fora dela.
Pensadores indígenas, como Ailton Krenak e Davi Kopenawa, falam conosco com uma lucidez que a filosofia ocidental parece ter esquecido. Para eles, a Terra não é uma paisagem nem um recurso: é uma entidade viva, uma mãe, um corpo no qual todos respiramos.Kopenawa diz que os brancos “dormem de olhos abertos”, incapazes de ver os espíritos que sustentam o mundo. Krenak recorda que apenas uma transformação da sensibilidade — uma metamorfose do coração — pode nos fazer voltar a sentir-nos parte desse corpo comum.
Não se trata de regressar a um passado idealizado, mas de abrir a possibilidade de uma nova forma de pertencimento — na qual o humano deixe de ser o centro e volte a ser apenas um entre muitos. Esse chamado indígena converge, de outro modo, com as reflexões de Bruno Latour e Donna Haraway, que também questionam a ideia moderna de um sujeito separado do mundo. Para eles, não existe uma natureza “lá fora”, mas uma rede de relações onde humanos, animais, plantas, tecnologias e espíritos coexistem.
Pensar assim é aceitar que a metamorfose já está em curso, que a Terra se move e nos arrasta,e que resistir à mudança é apenas outra forma de negação.
Talvez a metamorfose de que precisamos não consista em imaginar um futuro diferente, mas em reaprender a sentir o presente: o ar, a chuva, os corpos, os outros seres.
Exercitar uma nova forma de olhar, de tocar, de cuidar, de compartilhar.
O Carnaval pode ser um lugar privilegiado para praticar isso. Porque no carnaval as fronteiras se desarticulam: os corpos se misturam, os sons se entrelaçam, as formas se tornam instáveis. Por alguns dias, a ordem hierárquica do mundo se suspende, e reaparece algo mais antigo: a experiência do comum. O Carnaval encarna, em sua própria linguagem, essa metamorfose de que falam Krenak e Latour: uma forma de vida em que tudo se relaciona, em que a alegria e o corpo também são pensamento.
A metamorfose da qual precisamos não tem forma definida nem meta final. É uma mudança na direção do olhar: da posse ao pertencimento, do domínio à colaboração, do eu à rede. É compreender que cada gesto, por menor que seja, participa da composição de um mundo comum. Uma metamorfose necessária seria aprender a viver com a Terra, e não sobre ela.
O Carnaval, com sua inteligência coletiva e sua força simbólica, é um dos espaços onde ainda podemos ensaiar essa mudança.
Panamérica Transatlântica